Saturday, January 27, 2007

JESUS CRISTO E ZEFIRELLI

Terão perguntado a Zefirelli onde foi ele buscar o segredo do seu jeito de falar da vida, em filmes mais ou menos notáveis. À laia de resposta, ele contava que foi assim (mais ou menos, é claro – mas nestes tempos de «ditadura da Estatística», é como se fosse exactamente assim): Zefirelli era mais um filho que só vinha atrapalhar a vida na família, ao que parece numerosa e sem condições adequadas. Nada mais natural que se aplicasse o grau máximo de correcção para um falhado planeamento familiar. Toda a gente estaria de acordo, especialmente o pai. Mas a mãe de Zefirelli apostou nos riscos de mais uma aventura, e aí começaram muitas produções cinematográficas de qualidade.
Moral da história: a vida – e especialmente a vida humana – é uma energia que nos ultrapassa, mas que nós, com todas as potencialidades de que dispomos e que vamos aperfeiçoando, temos a obrigação de gerir «da melhor maneira», isto é: de acordo com o objectivo de «qualidade de vida» mas para todos os seres humanos e não só para as «raças puras». Se eliminamos um projecto de vida, e mesmo se eliminamos uma vida já «a funcionar» com ou sem projecto, cumpre-nos, exercendo o ideal de «qualidade de vida» para nós adultos, aproveitar a ocasião para alimentar uma posição cada vez mais esclarecida e eficiente contra o que cheira a morte e a favor da nossa vontade de merecermos – e de melhorar – a vida que temos. Se eu saio de um ambiente miserável para me realizar num ambiente propício, só viverei de acordo com a dignidade humana se não esquecer o que há de morte a combater e o que há de vida a aproveitar com todas as forças. Se a nossa razão – melhor: se o nosso acto de raciocínio livre de pressões externas – nos leva a pensar como mais plausível uma estratégia apenas de «menos morte», terá que ser em nome da VIDA PARA TODA A HUMANIDADE e não por egoísmo. Só assim seremos superiores aos outros animais. A pressão do pai de Zefirelli sobre a mãe é um caso demasiado comum: os machos olham para as fêmeas como sendo eles os animais dominadores – não provam o agridoce da vida. Esta atitude de machos dominadores encontra-se frequentemente em grupos políticos, religiosos, «intelectuais»… sempre bem atentos aos interesses economicistas e nomeadamente de poder.
E Jesus Cristo? S. José não foi «machista» como o pai de Zefirelli: mas não podia estar mais em desacordo com aquele filho totalmente fora dos programas. Acusaremos de machista o «arcanjo Gabriel» – que apresentou a gravidez de Maria como facto consumado, sem volta a dar? De modo algum: o «arcanjo» apenas foi «enviado» pelo «Poder máximo». Mas Gabriel bem que simboliza a linguagem daqueles que se acham detentores de uma verdade vinculativa como grilhões: tens que fazer isto ou aquilo, porque é vontade de Deus (ou do Governo, ou do Bispo, ou do Premio Nobel, ou do «Homem das massas»…) Talvez que, já nessa altura, «contra tudo e contra todos», Jesus nasceu e mereceu, mais tarde, ser reconhecido como o Cristo. A trapalhada era tão grande que Maria e José precisaram da ajuda de um arcanjo…
Moral da história: «A Vida chama-nos desde o ventre materno» («Vida» é o nome laico de «Deus»). Precisamos cada vez mais de «arcanjos» (leia-se «boas ideias») que nos ajudem a desenvolver sempre mais as nossas técnicas para «menos morte» e «mais vida» (implica «melhor vida»). O progresso do nosso saber teórico e prático torna-nos mais responsáveis pela procura incansável de ambientes humanos onde o «chamamento da vida» é escutado com alegria e discernimento, sem nos vendermos a projectos alienantes, venham eles de arcanjos ou arcanjas (pela doçura da voz).
A grande energia da natureza humana é a capacidade e tropismo para a mudança. Sem mudança, a nossa vida seria a mais monótona, inútil e mortífera produção em série. É claro que há mudanças para bem e para mal, bons e maus profetas, bons e maus políticos, bons e maus homens de negócios. Mas impedir a mudança é matar a própria sede de mais e melhor vida. E o valor de uma pessoa também se revela pela capacidade de querer e aceitar a mudança, implicando mudanças dolorosas no modo de pensar e agir. Traçar limites à razão e curiosidade humanas é pois o mais «grave pecado contra a natureza» – e o poder das organizações religiosas não tem uma lista mais negra do que o poder de governos e de «patrões» em geral.
«Pecado grave contra a natureza» é pois combater os projectos de planeamento familiar e de fruição do prazer sexual, libertos da angústia de despoletar um filho não oportuno; é combater a evolução de técnicas anti-conceptivas e de apoio à vida que já temos em mão. Como também é contra a natureza não querer pensar e preferir «descansar» protegidos pelas «decisões» nada angélicas dos «arcanjos no poder» – políticos, religiosos, intelectuais…
Será possível encomendar um exército de super-arcanjos dos que trazem bons ares às nossas orelhas?
Fui criticado por não ter manifestado a minha posição no referendo, uma vez que escrevo muitos artigos de opinião. Aceito a sugestão de mudança à minha vontade de guardar silêncio. Eu vou votar «não»: mas é sobretudo um «não» ao referendo: a «mudança» proposta é um fogo fátuo, nascido (quando este é que devia ser abortado) de jogadas políticas, preconceitos culturais, radicalismo religioso, ingenuidade, anti-clericalismo primário, informação falsa (muito pior que a do arcanjo Gabriel), demagogias, fanatismos de toda a espécie, desforras sentimentais e ideológicas, egoísmo… meu Deus, vai mesmo uma grande trapalhada! O espectáculo é mais triste com a escandalosa falta de cultura e educação da parte de alguns políticos, padres e até Bispos.
A mudança proposta neste referendo é demasiado a proposta de preguiçosos e hipócritas, como os que, antes do 25 de Abril, «eliminaram a PIDE», chamando-lhe «DGS». Como eles, não desejam uma efectiva mudança de atitudes para combater as condições de vida desumanas, limitando-se a «manifestar compaixão» com mudar os termos legais. Prefere-se adormecer na ideia confortável de que se é bom, apenas porque não parecemos maus… Quantos vão ao encontro dos homens e mulheres que sofrem – alguns para provocar aborto (com razões ou não) e muitíssimos mais para não provocar aborto? Será aceitável só olhar numa direcção para ganhar dividendos de poder (pelo «sim» e pelo «não»)?
A mudança de nível humano não é corajosamente encarada pelos poderes políticos, religiosos e financeiros. No primeiro referendo sobre o aborto, os que se alardeavam de só eles defenderem a vida, exultaram com a vitória tangencial do «não», mas adormeceram e só agora publicam obras de reflexão tendencialmente séria (nessa altura, chamei à atenção um dos responsáveis a nível nacional). Continuamos a esconder o grande projecto que nos incomoda: O PROJECTO DA EDUCAÇÃO, que nos habilite para pensar, agir e trabalhar EM LIBERDADE. É um projecto de todos e não só das «pessoas importantes». Já Platão se queixava de que os nossos governantes deviam ser escolhidos entre as pessoas bem educadas…
Pelo seguro, e para não me parecer com o fariseu que desprezava o publicano, já encomendei um «super-arcanjo» para mim. Para me ensinar como se pode defender a vida, apesar de tudo. Mas só o consigo escutar num ambiente produtivamente calmo, um ambiente de restauração da liberdade.

Manuel Alte da Veiga
m.alteveiga@netcabo.pt

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